Qualquer pessoa que visite a Bósnia e Herzegovina poderá reparar numa particularidade: o elevado número de carros Volkswagen Golf que se vêem. Por todo o lado, de diversas idades, em estado de conservação diferentes.
Durante muito tempo pensei que esta abundância de Golfes se devesse a uma questão de estatuto, que a partir de determinado momento tivesse sido estabelecido como o carro a ter, um pouco como sucedia em Portugal com os Mercedes há umas décadas atrás. Mas não… na realidade a forte presença destes carros nas estradas bósnias tem outras razões, bem mais práticas.
Nos anos 90 existia nos arredores de Sarajevo, na zona de Vogošća, uma enorme unidade fabril, a PRETIS. Para além de panelas e tachos e (por ter sido a primeira produtora de panelas de pressão, esse tipo de panelas ganhou a designação “Pretis”)… munições… a fábrica montava automóveis. Até meados dos anos 70 o famoso “Carocha” era aqui montado, e a partir daí a marca passou a entregar os modelos Polo, Passat, Caddy mas sobretudo, em grandes quantidades… isso mesmo… os Golf.
Até então os únicos carros produzidos em quantidade no país eram os Zastava, fabricados na Sérvia, em Kragujevac, com concessão da Fiat, um pouco como sucedia nessa altura com a Seat espanhola.
Estes automóveis eram de péssima qualidade, dotados apenas com motores Fiat razoáveis. A chapa, por exemplo, começava a enferrujar em poucos meses. Compreende-se facilmente a aceitação dos novos Golf J, lançados no mercado a partir de 1975, com equipamento muito reduzido para baixar o preço final. Não tinham auto rádio, os pára-choques eram pintados em vez de serem cromados, imenso plástico, sem luz de marcha atrás… ora tudo isto permitiu colocar o carro no mercado a um valor viável para os consumidores bósnios.
Ora como a produção se realizava em Sarajevo, verificava-se uma escalada na adesão ao modelo: é certo que se vendia a toda ex-Jugoslávia, mas mais ainda na Bósnia e Herzegovina, onde existia um orgulho especial neste produto “nacional”… e sobretudo em Sarajevo, onde as pessoas faziam mesmo questão de obter aquele famoso carro produzido na sua cidade.
Entretanto inicia-se a guerra, Sarajevo fica cercada e assim permanece durante vários anos. A PRETIS foi ocupada pelos sérvios e os vastos milhares de Golf que ali aguardavam transporte para clientes e retalhistas simplesmente desapareceram. Os equipamentos fabris foram desmontados e transportados para a Sérvia e o que restou foi destruído.
Mas os que estavam na cidade tiveram um papel importante na defesa de Sarajevo. Foram usados até à exaustão, especialmente o modelo Caddy, de caixa aberta, onde eram montadas armas mais pesadas e macas para evacuação de feridos. Estes veículos ficaram rapidamente danificados pela guerra… buracos causados por fragmentos de explosões e balas, vidros partidos, chapa retorcida… mas continuavam a andar.
Importante: o video abaixo contém imagens chocantes
Em cima, video no Youtube sobre os Golf durante o cerco.Entretanto a VW comprometeu-se a regressar a Sarajevo após o fim da guerra, uma promessa que cumpriu, apesar de não mais se terem voltado a produzir Golf. Nas instalações da marca de Sarajevo montam-se actualmente Skoda Fabia.
Actualmente o modelo continua a ser muito apreciado. É uma memória colectiva mantida viva, um velho hábito que teima em morrer. Hoje, ao passearmos em Sarajevo, vimos Golf de todas as gerações, apesar de desde 2015 se ter proibido a circulação do modelos 2 – que foi o maior sucesso de vendas de sempre, lançado em 1986. Mais uma vítima das directrizes “europeias”.
Golfamania em Sarajevo. O nome diz tudo.Em 2016 o o escultor Daniel Premec apresentou a maqueta do monumento ao Golf, uma ideia que acarinha há dez anos mas que só agora passará à realidade. Uma homenagem merecida, segundo ele dedicada a “um carro que tanto ajudou na sobrevivência dos cidadãos de Sarajevo.”
A frota de táxis da cidade tem inúmeros Golf, assim como os serviços policiais. É um carro omnipresente e agora o leitor já sabe porquê.
Sarajevo, City of Golf – Documentário em 7 partes, com legendas em inglês